Porra para as gaivotas

Por: João Madureira

Andamos há décadas numa espécie de montanha russa entre o progresso e o declínio. A tentar emergir das ruínas, depois da farsa do império. Tudo por aqui é temporário, menos o subdesenvolvimento, que parece perpétuo. Sempre a ir a todo o lado sem sair do lugar, sem chegar a lado nenhum. Os portugueses nem sequer são sonhadores, limitam-se a aparecer nas fantasias dos outros povos, pensando que são as suas. No momento apropriado, até se sindicalizaram e pagaram as cotas. Mas de pouco lhes valeu. Apesar da Amália, veio o Zeca e depois calhou-nos em sorte esse presunçoso fadista que cantava a parolice tamanha do voo de uma gaivota no céu de Lisboa, como se isso fosse quase tudo. Afinal, tudo isso é quase nada. E por aqui andam a passear dinossauros de plástico, a mastigar comida de poliéster, a correr atrás das sombras, a fazer que acreditam que o Senhor transformou água em vinho, sabendo que foi precisamente o contrário. E eles, todos nós, a lerem os versos dos outros e a escreverem os seus, como se fossem Fernando Pessoa no último mês de gestação. Tão pálidos, tão barrigudos, tão envergonhados. Sempre a teimarem nos hinos a marcharem contra os canhões. O país nasceu antes dos portugueses e só depois é que eles lhe foram acrescentados. Sempre a tentarem a sorte fora de portas. Sempre libertários nos comportamentos, mas conservadores nos costumes. Sempre a cobrirem sereias de pau carunchoso montados em naus catrinetas que pouco sabiam o que contar. Pátria de padres que abençoam com a mesma mão com que às ocultas apalpam o rabo das criadas, das patroas e, quando não, o traseiro dos efebos. A igreja olha para nós através de grades ou de vidros opacos. Ela faz que vê pouco. E nós somos como aqueles cantores que mesmo à noite usam óculos de sol. Os sinos das igrejas estão agora silenciosos. A neve rodopia nos telhados. Os clérigos de capotes púrpura esgueiram-se pelos pátios dos templos, provavelmente para irem cumprir algum dever sagrado. Alguns, quando se põem a falar, parecem o mesmíssimo Diabo a discursar com as palavras de Deus. Ou então Deus a arengar utilizando os subterfúgios, ou as desculpas, do Mafarrico. Os salvadores são o próprio pecado. No meio disto tudo, César escreve a Brutus e este responde-lhe que as reuniões a que assiste são de ex-colegas de escola. Como Tucídides disse, quatrocentos anos antes de Cristo, a natureza humana é sempre inimiga de qualquer coisa superior. Bem vistas as coisas, afinal nada mudou do seu tempo para o nosso. Vivemos entre telenovelas e escombros. O futuro não é promissor. Por que razão tudo parece tão corrupto e secreto? Tanto defeito escondido. Tanta verdade perseguida. Tanta qualidade desaproveitada. Andamos para aqui aos encontrões e sem rumo na vida. As pequenas coisas, que nem sempre percebemos, acabam por se transformar em presságios. Isto já vem de longe, desde o tempo do Padre António Vieira. Os jornalistas de hoje parecem os detetives privados dos livros policiais. Fingem ter descoberto recentemente que o povo português não encaixa muito bem no seu país. Qualquer dia, até os fadistas vão começar a cantar os fados em inglês, os ministros vão prestar as suas declarações públicas a fazer o pino e os deputados vão fazer as suas intervenções na Assembleia da República vestidos com os trajes folclóricos da sua região e expressar-se de forma coloquial e repleta de metáforas. Parece que sabem tudo, mas muitos deles nem sequer sabem o que lá estão a fazer. Podem até ser bons intérpretes, mas falta-lhes originalidade. Quando a gente comum chega ao poder acontece a democracia. E isso paga-se com a mediania que lhe é intrínseca. Não sei lá muito bem do que é que esta gente se queixa. A criatividade não se dá lá muito bem com os universos muito estreitos e controlados. Quando tudo se torna demasiado familiar, as pessoas começam a desorientar-se. Sentimo-nos impotentes em relação a certas coisas. E isso também já vem de longe. Talvez desde D. Afonso Henriques. Dizem-nos que Portugal está a mudar. Também esta lengalenga já vem de longe, talvez desde o Marquês de Pombal. E o povo português, ou alguém por ele, afirma que tem o sentido do destino e que até é capaz de acompanhar as mudanças. Mas a sua identidade filosófica começa a esgotar-se.