Raspadinhas: Solidariedade ou Crise Silenciosa?

Nas bancas de jornais, tabacarias e cafés, as raspadinhas tornaram-se um objeto tão comum quanto o café da manhã. Vendidas como um jogo inofensivo, rápido e acessível, são, na verdade, um dos produtos mais lucrativos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Parte substancial da receita obtida com estas e outras apostas financia causas sociais de grande importância — hospitais, centros de investigação, associações desportivas e culturais. Em teoria, um círculo virtuoso: jogamos um pouco, ajudamos muito.​

Mas será mesmo assim? Ou estaremos perante um modelo de financiamento que, apesar dos méritos sociais, assenta em fragilidades individuais, sobretudo das camadas mais vulneráveis da população?​

As raspadinhas são particularmente apelativas a quem enfrenta dificuldades económicas. A promessa de um prémio imediato, mesmo que improvável, oferece uma fuga momentânea a quem vive com pouco. Estudos recentes têm vindo a demonstrar que são as pessoas com menores rendimentos as que mais gastam neste tipo de jogos, muitas vezes com regularidade alarmante. Não jogam por lazer. Jogam por esperança — e isso muda tudo.​

Um estudo realizado pela Universidade do Minho para o Conselho Económico e Social, intitulado “Quem Paga a Raspadinha?”, revelou que cerca de 100 mil portugueses têm problemas de jogo com a raspadinha, dos quais 30 mil apresentam perturbação de jogo patológico. O estudo destaca ainda que pessoas com rendimentos entre 400 e 664 euros têm três vezes mais probabilidades de serem jogadores frequentes da raspadinha em comparação com quem aufere mais de 1.500 euros por mês.

Neste cenário, as raspadinhas deixam de ser uma forma de entretenimento e passam a representar um risco real de endividamento, exclusão social e rutura familiar. Já há quem lhes chame “o imposto dos pobres” — um imposto voluntário, sim, mas disfarçado de oportunidade.​

Enquanto sociedade, temos de nos perguntar: será legítimo financiar a solidariedade social através de um modelo que pode contribuir para o agravamento da pobreza de quem já vive em situação de fragilidade? Será justo apoiar hospitais e associações à custa da saúde financeira de cidadãos vulneráveis?​

É urgente repensar este modelo. Isso não significa eliminar os jogos sociais, mas sim regulá-los de forma mais rigorosa, reforçar a literacia financeira e promover campanhas de sensibilização que alertem para os riscos do jogo patológico. Tal como com o álcool ou o tabaco, não basta a advertência escrita em letra miúda — é preciso uma ação educativa e preventiva robusta.​

A Santa Casa tem um papel histórico e insubstituível no apoio social em Portugal. Mas não podemos fechar os olhos ao facto de que uma das suas fontes de financiamento mais rentáveis pode estar a gerar uma crise silenciosa dentro de muitas casas portuguesas.​

É tempo de encarar esta realidade com coragem e responsabilidade. A solidariedade social não pode ser construída sobre o desespero dos mais frágeis, quando ainda esta semana soubemos que as apostas superaram em 2024 os 24 mil milhões de euros.