E por aqui andamos…

Por: João Madureira

E por aqui andamos nós a escolher entre o egoísmo e o egoísmo. Que tempos estes, Deus meu! Que tempos estes! Grande parte dedicados a ouvir ou a contar histórias sobre o amor felino e a fidelidade canina. Bons tempos em que se ia buscar ao quintal bons frutos e bonitas flores, enquanto os sinos badalavam, as procissões passavam, as mascaradas desciam as ruas e os bailaricos alegravam os outeiros. Agora tudo arde. O país inteiro, no verão, parece um paiol de fogo de artifício. A magia de outros tempos é agora um eco. E também um cliché. E nós, os pretensos saudosistas, a elaborar cenários kitsch. Sempre a apregoar os estereótipos ligados ao desejo e à solidão. Somos uma espécie de filósofos tristes. E agora que cada um pode ter um carro pelo preço da uva mijona, deu-nos para andar a pé, como os peregrinos ao redor dos santuários. Que raio de cisma! Desceu sobre nós o Espírito Santo dos escuteiros ou da Mocidade do tempo da outra senhora. Mas estou em crer que as abelhas ainda zumbem e as melgas picam. Antigamente moviam-se montanhas com a fé. Era tudo uma espécie de via-sacra com laivos de mater dolorosa. De uma coisa estou certo, podem não existir as outras almas, mas a alma lusa existe. Lá fora, os revolucionários foram sempre adeptos da aceleração. Por cá, as suas cópias funcionaram sempre ao retardador. E nunca mais nos libertamos disto. Nem daquilo. Nem dos outros. A alma portuguesa é apenas um desvio semântico. A nossa identidade ou não existe ou é um enigma. A nossa principal dinâmica é a divisão. As águas paradas também enjoam, sobretudo as gentes mais intrépidas deste país de marinheiros. Nós gostamos de conversar. Esse é o nosso principal divertimento. Pode-nos faltar cultura, mas compensamos isso com o excesso de doçura. Há lá povo mais doce do que o português. Claro que isso provoca diabetes, mas para alguma coisa têm de servir a metformina e o Serviço Nacional de Saúde. Ser burro no nosso país não é uma exceção. Do mal o menos. A regra segue dentro de momentos. A província continua a ser uma espécie de jardim zoológico que os políticos visitam em campanha eleitoral para observarem o povo povinho povo no seu habitat natural. E prometem promessas que logo esquecem quando estão de volta à capital. Está na hora de lhes dedicarmos uma música dos Galandum Galundaina: “Nós deiqui i bós daí/Sodes tantos cumo nós/Mataremos un carneiro/Ls cuornos são para bós//Lá lá lá lá ra lá/Lá lá lá ra laia/Lá lá lá ra lá/Lá lá lá ra laia…” Podem até mudar os nomes às coisas e aos lugares, mas as pessoas continuam arreigadas aos seus defeitos. Bem vistas as coisas, o País está tranquilo. E hora a hora, Deus melhora. Nós até podemos não fazer nada, mas alguém o fará por nós. Essa é a nossa esperança. Neste país de solidó estamos sempre prontos a desviar com gracejos, as conversas que não nos interessam. A nossa realidade revela sempre uma pequena inclinação decorativa. Apesar de tentarmos fotografar o futuro, apenas se nos revela o passado. Somos gente muito autocompassiva e ressentida. Na maioria das vezes, transformamos a nossa ousadia em temeridade. A nossa suposta coragem é uma forma difusa de medo. A nossa realidade social é uma espécie de farsa vicentina. A democracia política é um teatro e, como todos sabemos, ninguém pode atuar num teatro sem fingir aquilo que não sente. O problema está naqueles que fingem com tanta convicção que acabam por sentir aquilo que fingem, acabando por confundir a realidade com a sua própria representação. São estes os que vão seduzindo os interlocutores com a sua simpatia e com a vontade insaciável de agradar a gregos e a troianos e os endrominar com o seu infindável repertório de historietas. A tudo nos habituamos: às mentiras, ao descuido, às modificações, ao lixo, às terras de poulo, à ineficiência, ao progresso, à cosmética. E lá vamos porfiando na nobre arte de estar sentados a olhar para os montes e a pensar na praia e no mar. E lá na aldeia o avô e a avó a cavarem a terra e a regarem as hortênsias. E na cidade os netos a entusiasmarem-se com facilidade. Tudo assim e assado. Tudo a agitar os humores. A dançar e a rezar antes da peregrinação a Fátima. Tudo reluz neste país de pastorinhos enfeitiçados por uma senhora que veste de branco e que costuma pousar nos ramos das azinheiras.